Nesta página você poderá ler a peça “Que a vida imite a arte”, ou imprimi-la para leitura. Sozinho, ou de preferência em grupo, considerando que a peça tem quatro personagens. Para imprimir clique aqui.
A ideia é avaliar a possibilidade de implementar uma leitura dirigida na sua igreja, com base nas orientações disponíveis na página “Fragmentação”.
A numeração ao final das falas permite localizá-las na página “Fragmentação”.
Boa leitura!
QUE A VIDA IMITE A ARTE!
Cena 1 – Água fria
A peça começa com dois amigos sentados num banco de praça. Ambos com ar de sorriso. Até que o diálogo é retomado.
RONALDO – Quando o Roberto me falou, que você tava na cidade… Depois desse tempo todo… Você era um irmão pra mim, você sabe. E ainda é. 1
MURILO (sensibilizado) – É claro que eu sei! E você pra mim. 2
RONALDO – Vocês foram pra Manaus a gente tinha… 3
MURILO (impreciso) – Dezoito, praticamente. 4
RONALDO (avaliando) – Vinte e dois anos… Olha isso. 5
MURILO – Pois é, precisou tia Carlota adoecer… Mamãe, único parente vivo… E cá estamos nós. Uma cuida da outra, e eu das duas. 6
O Ronaldo estranha, o Murilo repara, e faz um acréscimo.
MURILO (tardio) – E as duas de mim. 7
RONALDO (cômico) – Ãh bom… E eu não conheço as peças? Mais superproteção… Só… na liga da justiça. 8
MURILO – Você não presta Ronaldo. 9
RONALDO (sarcástico) – Muito obrigado! (saudosista) Eu só sei que é muito bom, sentar aqui com você… e relembrar aqueles tempos. 10
Pausa breve.
MURILO – Adivinha do que é que eu lembrei agora? 11
RONALDO (arriscando) – Daquela coça de fio que mamãe me deu. Por sua causa! 12
MURILO – Nããão… Da nossa peça. Primeiro lugar naquele concurso. Pouco antes deu ir pra Manaus. Parece até que aquilo foi um sonho. 13
RONALDO (enfático) – É claro que eu lembro. / (enigmático) Aí. Vou te falar uma coisa cê não vai acreditar. 14
MURILO (curioso) – O que é que foi? 15
RONALDO (afetado) – Os meus filhos encenaram elaaa. 16
MURILO (incrédulo) – Mentira. A nossa peça? Aquela? 17
RONALDO – Siim. Pra escola inteira. Arrasaram. Nós arrasamos. Né? Eu até pensei: “Se o Murilo tivesse aqui… / Mas tá tudo gravado. Cê vai assistir. 18
MURILO (imaginando) – Cara… Eu vou viajar muito. 19
RONALDO (categórico) – Vai. Porque ficou… demais. 20
MURILO – Tem muito tempo isso? 21
RONALDO – Agora. Um ano e meio atrás. Meu garoto com 20… a guria com 18. A Márcia, minha esposa, já tinha lido, mas assim… ficou encantada, vendo os filhos lá. 22
MURILO (considerando) – Certamente… uma belíssima experiência em família. 23
RONALDO (emotivo) – Sim. / Infelizmente… a nossa última boa lembrança. A gente se separou, logo depois. A Márcia recebeu uma boa grana, de herança, e um restaurante, lá em Jundiaí. E aproveitou pra… fazer o que já tava querendo. Assim vejo eu. 24
MURILO (sucinto) – Eu sinto muito. 25
RONALDO (triste) – Já faz mais de um ano, mas… quando a gente gosta… É muito… complicado. 26
MURILO (solícito) – Eu sei como é que é. 27
RONALDO (baqueado) – É toda uma história sabe? Juntos. Os filhos… E você ter que… Enfim… 28
MURILO – Mas fala dos seus filhos. 29
RONALDO (desperto) – O Pedrinho tá na faculdade, em Campinas. Jornalismo. Arrumou emprego por lá. / Mas sempre liga; de vez em quando aparece… 30
MURILO – E a guria? 31
RONALDO (orgulhoso) – Ficou comigo. / Afinidade demais. Divergimos, às vezes. Aí cê tem que ver os argumentos. Já me dava xeque-mate com oito anos. Acredite se quiser. / Sinto orgulho? Ou vergonha? 32
MURILO – Orgulho, orgulho. / (agradável) Quis ficar com o paizão… 33
RONALDO – É… Tá namorando um nerd aí. Acho que também ajudou. 34
MURILO (conciso) – Entendi. 35
Pausa breve.
RONALDO – Aí. A gente ganhou aquele concurso não foi à toa não? Você teve uma ideia muito boa. / O fio central, né? 36
MURILO – Sim. Aí a gente resolveu fingir, que você era realmente o Ricardo, e que eu era realmente o Eduardo. E o papo… rolou. 37
RONALDO – Rolou, e rendeu. / No final das contas… 38
MURILO (saudoso) – Primeiro lugar em autoria teatral estudantil. A nível estadual. 39
RONALDO – É… Lembra da repercussão? 40
MURILO – É claro! Teve até entrevista, na TV local. 41
RONALDO – Siim… Um monte de gatinha, querendo foto… Autógrafo. 42
MURILO (nostálgico) – Ééé… / Aquilo tudo foi muito legal. 43
RONALDO – Quer saber? Essa é uma das melhores lembranças da minha vida. 44
MURILO – Da minha também. / (pensativo) Relembrar é meio que… reviver. Né? 45
RONALDO – Siim… 46
Pausa breve.
RONALDO – Eu nunca mais mexi com teatro. 47
MURILO (pensativo) – Eu também não. 48
Pausa breve.
MURILO (aterrissando) – Mas… voltando pro agora. Corta pro agora. 49
RONALDO – Fala. 50
MURILO (apelativo) – Eu preciso de um trampo. 51
RONALDO – Calma. Eu já tô pensando em alguma coisa. 52
MURILO (surpreso) – Sério? Qualquer coisa… me avisa. 53
RONALDO – Sim, claro. / E esse jornal aí? Alguma… proposta de trabalho interessante? 54
MURILO – Na verdade… eu nem abri ainda. 55
Pausa breve. O Murilo folheia o jornal e tem uma surpresa.
RONALDO – Que cara é essa? 56
MURILO (urgente) – Olha isso aqui! 57
Ambos leem juntamente, e têm reações diversas.
RONALDO (sereno) – Rapaz… É bonito isso. 59
MURILO – Sim, sim. Mas fala aí! 59
RONALDO – Pois é, o cara teve uma experiência… aparentemente parecida, com essa que você me contou agora há pouco, e tá querendo… 60
MURILO (afoito) – Replicá-la ao extremo. O máximo que ele puder. Até aí, beleza. 61
RONALDO – Sim. / O cara é um megaempresário; um ricaço… Teve uma… epifania… 62
MURILO – Parece… grave, não? 63
Pausa breve. O Ronaldo, comicamente surpreso, mas o Murilo esclarece.
MURILO – Tô zoando. Uma revelação divina, pra resolver algo… aparentemente, sem solução. 64
RONALDO – Pois é. Parece mesmo um… direcionamento divino. 65
MURILO – Sim, mas… independente disso, o que é que você me diz? 66
RONALDO – / Pera aí. Você tá falando… Não, não… Não tem como. 67
MURILO (incrédulo) – Como assim? Você acha que isso aí é uma coincidência? 68
RONALDO (apaziguador) – Olha só, a gente acabou de tomar conhecimento disso. Então… vamo com calma. 69
MURILO – Tá bom. (repentino) Qual foi a parte de “10 milhões, pras três, peças de teatro, com o maior potencial evangelístico…”, que você não entendeu? 70
RONALDO (calmo) – Eu entendi. 71
MURILO – Olha só: Quando alguém fala: “Coincidências não existem”, eu discordo. É claro que coincidências existem. Mas ISSO aí? A gente tem seis meses! Vamo lá! 72
RONALDO – Pode ser coincidência, e pode não ser. Se é, é. Mas se não for, você tá querendo dizer exatamente o quê? 73
MURILO – Vinte anos depois; no dia em que a gente se reencontra… Acabamos de falar do assunto… Você quer que eu pense o quê? 74
RONALDO – Que Deus preparou isso? Que o universo conspirou? Vão ter que caprichar mais. Sabe porquê? 75
MURILO – Fala. 76
RONALDO – Eu amo o meu trabalho, mas ele me esgota. Eu chego em casa morto. Tomo um banho; janto; e apago. No outro dia, tudo de novo. De segunda, à sábado. Como é que eu vou arrumar tempo pra… ler bíblia; elaborar texto; trama; diálogos… 77
MURILO (desiludido) – Entendi. 78
RONALDO – Fora isso: Dez milhões! Imagina a concorrência! Até ateu vai participar. / A nível nacional! / Isso sem falar que nem é a nossa praia. Tanto que nenhum dos dois… nunca mais mexeu com isso. 79
MURILO (baqueado) – Tá bom. / Vai ver… o desemprego tá me fazendo ver coisa onde não existe. 80
RONALDO – Também não precisa ficar assim. Escuta isso: Eu tô pra receber uma promoção. A qualquer momento. Logo, logo… eu vou poder te ajudar.81
MURILO (meio apático) – Beleza. 82
RONALDO (olhando o relógio) – Olha aí. Vou ter que ir lá. Buscar a guria, na rodoviária. Mas a gente vai se falando. Vamos marcar, pra você assistir à peça lá em casa. Tá bom? 83
MURILO – Tá bom. 84
RONALDO – Não fica chateado comigo não. Vem cá. Me dá um abraço aqui. 85
Os dois se abraçam.
RONALDO (frisando) – Ó. Tamo junto. 86
RONALDO – Valeu, valeu. 87
RONALDO – Ó: Fui! 88
O Ronaldo sai de cena, enquanto o Murilo senta no banco, pensativo. As luzes se apagam, fim da primeira cena.
Cena 2 – Intervenção Divina
A peça dá um salto de uma semana. O Ronaldo está sentado num outro banco de praça. Até que o Murilo entra em cena.
MURILO (animado) – E aí? Já sei. Rolou a promoção. 89
RONALDO (hesitante) – Bom, na verdade… 90
MURILO – Fala aí. 91
RONALDO – O meu chefe me chamou lá na sala dele, e… a coisa resumidamente foi mais ou menos assim: “Ronaldo, nós não sabemos o que seria dessa empresa sem você”. 92
MURILO – “Não sabemos o que seria dessa empresa sem você”. Até me emocionei agora. (mostrando o braço arrepiado) Olha aqui, olha aqui! 93
RONALDO (ignorando) – “Bom, a partir de hoje, nós vamos descobrir”. 94
MURILO (perplexo) – Não entendi. Pera aí. Fui reto na curva. Como é que é? 95
RONALDO – “Por favor, passe no departamento pessoal e assine a papelada”. 96
MURILO (cômico) – Eu te falei que eu tenho labirintite, né? / Tô tentando assimilar. 97
RONALDO (robótico) – Eu também. / Pra quem esperava uma promoção.. 98
MURILO – E alegaram o quê? 99
RONALDO – Reestruturação. Mas eu já sei o que foi. Rachei um Uber com a secretária dele. Uma… beldade, pela qual ele é… obcecado. 100
MURILO (cômico) – Iiih… 101
RONALDO – Ficou sabendo que ela… andou elogiando o meu… astral. 102
MURILO – E foi o suficiente. 103
RONALDO – Pra você ver. 104
Pausa breve.
MURILO (apático/cômico) – Não sei nem o que te dizer. Sei lá. Bem-vindo ao clube, né? 105
RONALDO (murcho) – Valeu. 106
Pausa breve.
RONALDO (cuidadoso) – Mas não foi só por isso que eu te chamei aqui não. 107
MURILO – Fala aí. 108
RONALDO (sem graça) – Eu… fiquei… curioso, e… dei uma olhada lá, no edital, daquele… concurso. 109
MURILO (frio) – Sei. 110
RONALDO – Você… chegou a dar uma olhada? 111
MURILO – Não. Seus argumentos foram bem convincentes. Desanimei… geral. 112
RONALDO – Sei. Mas assim… Entusiasmo… zero? 113
MURILO (irônico) – Na lona. Foi nocauteado, né? Não ficou sabendo? 114
RONALDO (defensivo) – Olha só: Eu não falei que eu não queria. Eu falei que eu não podia. Que eu não tinha… tempo. 115
MURILO – Esquece. “São 10 milhões! Imagina a concorrência”! 116
RONALDO – Sim mas… o 3° lugar… paga bem. Não precisa ser o… 1°. 117
MURILO – E daí? “Até ateu vai participar”! 118
RONALDO – Força de expressão… Onde já se viu? Um ateu, evangelizando. 119
MURILO (provocador) – “Nem é a nossa praia. Tanto que nenhum dos dois nunca mais mexeu com isso”. 120
RONALDO (bom de drible) – A gente conseguiu quando era novo. Imagina agora, muito mais experientes… / Você é convertido; conhece a bíblia… 121
MURILO – “É a Nível nacional! E não… estadual”. 122
RONALDO – Sim mas… prum… nicho… bem específico. Não é isso? 123
MURILO (apelando) – Tá bom. / “Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar”! 124
RONALDO – Não, peraí. Essa aí não! 125
MURILO (entregando o jogo) – Eu sei Ronaldo. Eu tô zoando Ronaldo. Imagina você daqui a 40 anos no meu ouvido: “Se a gente tivesse tentado, né? Mas você não quis. Nunca vamo saber”. Tá loco! 126
RONALDO (surpreso) – Então você topa? 127
MURILO – Já que você insiste… tudo bem então. Mas com uma condição. 128
RONALDO (ressabiado) – Qual? 129
MURILO – Quero conhecer a guria que te dá xeque-mate. Porquê olha… Vou te contar hem. 130
RONALDO (lisonjeado) – Dou minhas pernadas, dou minhas pernadas. Conhecer a Bibi? Isso aí não vai ser problema. 131
MURILO (prático) – Então vamo lá. Quais são os planos? 132
RONALDO – Eu já até dei sondada… pra saber dos detalhes da conversão, do tal empresário. Pra ver se vinha alguma ideia, alguma… inspiração. Mas infelizmente… não achei nada. 133
MURILO – Foi uma boa ideia. E eu também achei estranho, ele não dar… maiores detalhes, naquela matéria. 134
RONALDO – Eu só sei que a SUA experiência de conversão foi bem… impactante. Se a gente usasse isso na peça, só pra… 135
MURILO – Gostei da ideia. 136
RONALDO – Assim… com todo o respeito. 137
MURILO – Não, não… Tudo bem. O tema pede. E pra mim vai ser uma honra. Vai rolar. 138
RONALDO (relaxando) – Maravilha então. 139
Pausa breve.
RONALDO – Será que a nossa velha tática ainda funciona? Fingir que somos os personagens. Você não tem essa curiosidade? 140
MURILO – Com certeza sim. 141
RONALDO – Bom, só falta uma boa ideia então. Você… tem alguma coisa em mente? 142
MURILO – Na verdade… sim. Mas eu ainda tô… amadurecendo a ideia. 143
RONALDO (curioso) – Aah.. mas fala aí. Qual é a ideia? 144
MURILO (enigmático) – Eu posso até falar, só não vale me acusar de plágio. 145
RONALDO (no vácuo) – Plágio? Como assim? Não entendi. 146
MURILO – Imagine aí… dois amigos que se reencontram depois de muuito tempo. 147
RONALDO (sondando) – Você fala… uns… 20 anos? 148
MURILO (sonso) – É… um bom… tempo. 149
Pausa breve.
RONALDO – E…? 150
MURILO – Bom, daí pra frente… 151
RONALDO – Daí pra frente…? 152
MURILO – Daí pra frente… eles acabam… hesitando, em reviver uma glória passada, devido a uma conspiração “mal acabada”, por parte do… universo. O qual resolve… “caprichar mais”, tornando assim viável… a empreitada. 153
O Ronaldo, surpreso, inicia um diálogo com uma voz empolada.
RONALDO – É uma ideia… excelente. Supimpa! 154
MURILO – Você também achou? 155
RONALDO – Sim. Já teríamos até aí… metade da peça. (repentino)E pode ficar tranquilo. Quanto à questão do… plágio. 156
MURILO – Sim, sim. É muita gentileza. 157
RONALDO – Apaziguemos as coisas então… da seguinte maneira: 158
MURILO – Sou todo ouvidos. 159
RONALDO – Me conceda a coautoria, e que reine, a paz. 160
MURILO – Negócio fechado. E que reine a paz então! 161
RONALDO (impagável) – Nobre aristocrata…! 162
MURILO (idem) – Ilustre fidalgo…! 163
RONALDO (eufórico) – Murilão, essa foi demais! Uma peça baseada em fatos reais! Olha aí! Até rimou! 164
MURILO (sóbrio) – Meia, peça. 165
RONALDO (desacelerando) – É. Meia peça. 166
MURILO – Olha só que loucura: Até aqui, na metade da peça… Presta atenção: A arte, vai, imitar a vida. 167
RONALDO – Certo. 168
MURILO – Agora, imagine, se daqui pra frente… a vida, resolve… 169
RONALDO (atropelando) – Dar o troco. 170
MURILO – Nãão. Retribuir a gentiliza… e, imitar a arte. 171
RONALDO (sintonizado) Então vamo caprichar! A nosso favor, é claro. 172
MURILO – Com certeza. / E… que a vida imite a arte. 173
RONALDO (rápido no gatilho) – Olha aí o título! 174
MURILO – “Que a vida imite a arte”. Perfeito. 175
RONALDO – Mas pera aí. 176
MURILO – O que é que foi? 177
RONALDO – Nós vamos ter um pequeno problema. 178
MURILO – Que problema? 179
RONALDO – Não vai dar pra saber se o nosso velho método, ainda funciona. 180
MURILO – Como assim? 181
RONALDO – Não vamos precisar fingir que somos os personagens. 182
MURILO (surpreso) – Nós somos os personagens. É isso mesmo. 183
RONALDO – Siiim. / Bom… fica pra próxima. 184
MURILO (conformado) – Fazer o quê? 185
RONALDO (meio absorto) – E não é que parece mesmo uma… intervenção divina? 186
MURILO – Eu, não tenho dúvidas. 187
RONALDO – Depois dessa… nem eu. 188
MURILO (se levantando) – Vamo andando então? 189
RONALDO (se levantando) – E o entusiasmo? Não tá mais na lona, né? 190
MURILO – Não. Tá de asa delta meu amigo! Tá de asa delta! 191
RONALDO (animado) – É isso aí! Agora é colocar isso tudo no papel! Partiu? 192
Eles saem de cena. As luzes se apagam. Fim da segunda cena.
Cena 03 – A Entrevista
A terceira cena começa num gabinete pastoral. O Ronaldo está sentado numa poltrona, e a uma certa distância dele, de pé, está o pastor Walter, com as mãos na cintura, e um ar de espanto.
WALTER – Nunca leu a bíblia? 193
RONALDO (sutil) – Não. 194
WALTER – Bom, pelo menos você admite. Já é o primeiro passo para a recuperação. / Mas nem os evangelhos? 195
RONALDO – Tô lendo agora. Pra me… familiarizar. 196
WALTER – Pro concurso. 197
RONALDO – Sim. 198
WALTER – Entendi. 199
RONALDO (surpreendendo) – E tem uma coisa que chamou muito a minha atenção. Eu nunca parei pra pensar, que esses evangelistas, andaram pra cima e pra baixo com Jesus durante três longos anos. Numa época em que praticamente não havia… entretenimento. 200
WALTER – Comparando com os dias atuais então… 201
RONALDO – Então era o quê? Conversavam o tempo todo. Ou seja, se tornaram… íntimos, Dele. / Eu tô lembrando aqui: Jesus lavou os pés dessa galera. 202
WALTER – “Não vos chamarei servos, mas amigos”. 203
RONALDO – Pois é. / Só que eu sempre tive em mente, um Deus… distante, indiferente, aos nossos problemas. Criou tudo e… saiu por aí, pelas galáxias… Sem se importar, com o que ficou pra trás. 204
WALTER (impressionado) – É uma visão bem… sombria. 205
RONALDO (divagando) – Mas quando eu era mais novo, sempre que acontecia alguma coisa ruim… 206
WALTER – Diga. 207
RONALDO – Aí eu já imaginava uma espécie de… guardião intergaláctico, com uma cadernetinha, me olhando de cima pra baixo, anotando as minhas falhas, e me dizendo – sem usar palavras: “Você sabe que me deve”. E sabe como é. Ninguém é perfeito, então… 208
WALTER (surpreso) – Cruzes. 209
RONALDO (distante/reflexivo) – Nem sei o que é pior. Indiferença, ou cobranças? / Indiferença é pior. Quem te cobra pelo menos te enxerga. Toma conhecimento da sua existência. Ou será que eu vejo assim… por já ter amargado uma boa e velha… indiferença paterna? 210
WALTER – Mas e agora? Lendo os evangelhos? Algo mudou? 211
RONALDO – Siim… Qualquer um que lê… encontra um Deus que… quer jogo. Que pede bola, entende? 212
WALTER – Pede bola? 213
RONALDO (informal) – É… “Vinde a Mim, diretamente, vós que estais… detonados. 214
WALTER (corrigindo) – “…cansados e oprimidos”. 215
RONALDO (original) – E Eu vos darei um… help. 216
WALTER (hesitando em corrigir) – Sim, sim. 217
RONALDO – Ou seja, Deus é um Deus que quer… intimidade. E eu nunca cheguei nem perto, de considerar essa possibilidade. 218
WALTER (sutil) – E como é que você está se sentindo? Em relação a isso? 219
RONALDO (cirúrgico) – A palavra é… /// leveza. Eu tô… diferente. E pra melhor. 220
WALTER – E você… já tomou uma decisão, ao lado de… Cristo? 221
RONALDO (esquivo) – Eu tô… amadurecendo, a ideia. É tudo muito recente, então… 222
WALTER – Sei. Pelo visto… ainda não tá precisando, de um… help. 223
RONALDO (driblando) – Então. Na verdade… sim. Daí a ideia, de entrevistar um pastor, da mesma denominação do criador do concurso, pra tentar colher elementos que possam… ajudar, na elaboração, do texto. 224
WALTER – E já que moram aqui, em São Paulo, porque não o que está mais próximo dele? 225
RONALDO – Sim, sim. Exatamente. 226
WALTER (solícito) – Então manda ver. 227
RONALDO – Ok. Vamo lá então. É… O Mariano Zang… chegou a conversar com o senhor sobre a ideia do concurso? Como surgiu… 228
WALTER – Já fazia algum tempo, que ele vinha frequentando a nossa congregação. Até que um belo dia ele me procurou, querendo saber como poderia… ajudar a igreja. Aí eu falei: “Olha, alguns irmãos estão querendo… reativar o departamento de teatro”. Você tinha que ver a cara dele. “Departamento de teatro”? / O sonho dele era ser ator. E eu nem sabia. 229
RONALDO – Eu tô surpreso. 230
WALTER (detalhista) – Só que, devido a uma… eventualidade… ele teve que assumir os negócios da família, então… 231
RONALDO (objetivo) – Sei, mas ele foi lá? Falar, com o pessoal? 232
WALTER – Foi, e se entrosou de um jeito… que hoje, parece até que sempre esteve por aqui. “Mão na luva”. Não é assim que falam? 233
RONALDO – Sim. “Pinto no lixo”. 234
WALTER – Pinto no lixo! / Eu só sei que foi desse entrosamento, que surgiu, a ideia, do concurso. 235
RONALDO – Sensacional. Mas e a experiência de conversão? Ele não deu maiores detalhes na imprensa, quando anunciou o concurso. 236
WALTER – Provavelmente… por haver muitos… pormenores, a detalhar. 237
RONALDO – Sei. Mas o senhor… conhece, esses… pormenores? 238
WALTER – Sim. Tudo começou, quando ele teve que passar algumas noites num hospital, acompanhando a mãe. E lá eles tinham dessas bíblias… bilíngues. Português/Inglês. Já viu uma dessas? 239
RONALDO – Não, não. 240
WALTER – A página é dividida ao meio, e cada lado tem o texto numa língua. E ele resolveu ler, essa bíblia. Pra passar o tempo, e pra… aprimorar o inglês, devagarinho… 241
RONALDO (atento) – Tô ligado. 242
WALTER – E aconteceu, que… numa daquelas noites, ele acabou lendo uma frase – de Jesus – que… deixou ele muuito triste. 243
RONALDO (curioso) – Qual foi a frase? 244
WALTER – “Por que a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz”. E a luz, você sabe… era Ele. 245
Pausa breve. Ronaldo, sensibilizado, balança a cabeça positivamente.
WALTER – Mas aí ele pensou, com ele mesmo: “Pera aí. Eu, quero, a luz. Eu, escolho, a luz. Mas o que é que eu tenho que fazer”? Foi aí que ele se sentiu… conduzido, a simplesmente, continuar, lendo, a bíblia. Aquela coisa assim: (sutil) “Continua”. “Não para”. 246
RONALDO (fisgado) – Conduzido…? Como assim? 247
WALTER – Essas coisas são muito… íntimas. Deus, se revela, às pessoas. Na hora mesmo a gente mal percebe; acha que é coisa da própria cabeça… / São… sugestões. Sempre muito… sutis; muito… suaves. Muito… amáveis. Acho… que nem, a mais amável das mães. 248
RONALDO – Eu… conheço uma história… bem… parecida. 249
WALTER – Eu já ouvi muitas. E vi, as mudanças. De conduta; de postura. Diante da vida, dos problemas… E sempre pra melhor. Como você mesmo disse, agora há pouco. 250
RONALDO (interessado) – Sim. Mas… eu ainda não recebi, nenhum tipo de… visitação. Seria essa a palavra? 251
WALTER – Sim. Mas talvez… o restante dessa história, possa te ajudar com isso. 252
RONALDO – Ok. Então… ele… seguiu, aquela… orientação. 253
WALTER – Sim. Era uma véspera de feriado prolongado, e ele embarcou, naquele comando, quase que… em tempo integral. Até que… 254
RONALDO – Até que… 255
WALTER – Alguns dias depois, já em casa, no quarto dele, segundo ele: “Foi como se depois de 45 anos de vida, alguém acendesse a luz pela primeira vez”. Só que aquela luz, foi se intensificando, muito, até que tudo se tornou… apenas… luz. Que apesar de intensa, não lhe ofuscava a visão. Consegue imaginar isso? 256
RONALDO (ligadíssimo) – Já tô lá. 257
WALTER – Então se prepara. 258
RONALDO – Pode falar. 259
WALTER – De repente, de dentro daquela luz, surgiu uma espécie de… enigma. Envolvendo três versículos. / Como contar isso num jornal? É como eu falei… 260
RONALDO (vidrado) – Sim, é muito detalhe. Mas… que enigma era esse? Ele falou, né? 261
WALTER – Sim. E é melhor você anotar. 262
RONALDO – Tô pronto. 263
Uma projeção no fundo palco mostra a transcrição do Ronaldo.
WALTER – João 17:17 – “Santifica-os na verdade. A Tua palavra é a verdade”. Grifa, a segunda frase. 264
RONALDO – Ok. “A tua palavra é a verdade”. 265
WALTER – João 14:06 – “Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, a verdade, e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim”. / Grifa, “Eu sou”, e… “a verdade”. 266
RONALDO (intrigado) – Ok. / Ué, mas… 267
WALTER – Pois é. Quem é a verdade? Ele, ou a Palavra? 268
Pausa breve. Ronaldo não sabe o que responder.
WALTER – Apocalipse 19:13 – “E estava vestido de uma veste salpicada de sangue. E o nome pelo qual se chama é a Palavra de Deus”. 269
RONALDO (atordoado) – Pera aí. É… O nome dele… O quê? 270
WALTER – Ele é a palavra. A bíblia. Aquela, empoeirada em cima de muita prateleira por aí. 271
RONALDO – Pera aí. Jesus, que é a luz, rejeitada pelos homens – mas que o Mariano quis – se revelou pra ele, na forma de luz, pra dizer que Ele, Jesus, é também, a Palavra. Palavra essa na qual o Mariano… “mergulhou”. 272
WALTER – “Achegai-vos a Deus, e Ele se chegará a vós”. E pelo visto… na mesma proporção. 273
RONALDO – Quer dizer então… que uma… superexposição à Palavra… converteria qualquer um? 274
WALTER – Não podemos transformar uma experiência pessoal em doutrina, mas… eu acredito que é por aí mesmo. 275
RONALDO – Eu tô muito… impressionado. 276
WALTER – Não é uma receita de bolo. Tem que ser com a motivação correta; com humildade, diante do seu Criador… Com muita… sinceridade. Mesmo porque, o nosso coração está… nu, diante Dele, então… / Use isso na sua peça. 277
RONALDO – Vou ver se eu dou um jeito. 278
WALTER – A Palavra é uma semente. E a mente, um terreno. Se ela vai brotar ali, criar raízes, até envolver o coração… Aí depende de cada um. Livre arbítrio. 279
Pausa breve. Ronaldo pensativo.
WALTER – Me responde uma coisa: Qual foi a passagem que mais chamou a sua atenção até agora? 280
Pausa breve. Ronaldo pensa pra responder.
RONALDO – É uma em que Jesus fala sobre… o… Ajudador. Ajudador, com letra maiúscula. 281
WALTER – “Mas o Ajudador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em Seu nome, vos ensinará todas as coisas…”. Na verdade, ele vai morar em você. Lembrei até do Mariano falando: “Eu nunca mais vou saber o que é solidão”. E é verdade. 282
Pausa breve. Ronaldo pensativo.
RONALDO (lembrando) – Tem uma outra – que o senhor falou pra senhorinha que saiu daqui – a porta tava entreaberta, eu acabei ouvindo. É sobre… fechar a porta do quarto, pra falar com Deus. 283
WALTER (preciso) – Mateus, capítulo 6, versículo 6: “Mas tu, quando orares, entra no teu aposento, e fechando a tua porta, ora a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê secretamente, te recompensará”. É de Jesus também. 284
RONALDO (acolhedor) – É muito tocante. 285
WALTER (atendendo uma ligação) – (ao telefone) Só um momento, por favor. (ao Ronaldo) A ligação que eu te falei. 286
RONALDO – Pastor Walter, foi um enorme prazer. 287
WALTER – O prazer foi todo meu. 288
Ambos caminham até a porta.
RONALDO – Muito obrigado. Pelo seu tempo; pela sua atenção… 289
WALTER – Não há de quê. E… melhoras, pra tia do seu amigo. E sempre que quiser… apareça. 290
RONALDO – Tá bom. / Será que algum dia, eu vou ouvir, essa tal…voz? 291
WALTER – Deus, quer, intimidade. Você mesmo disse. Apenas não seja… fominha de bola. 292
RONALDO (simpático) – Entendi. 293
O Ronaldo se retira, e o pastor fecha a porta juntamente com o apagar das luzes. Fim da terceira cena.
Cena 04 – Manias Nacionais
A quarta cena começa com Ronaldo e a filha conversando na sala de casa. Ele está numa mesa, de frente prum notebook, e ela está de pé, ali a volta dele.
RONALDO (triste) – Pô Bibi… você sabe que eu gosto da sua mãe. 294
GABI – Eu sei pai, mas a vida continua, né? Quer saber? Foca nisso aí. Tá te fazendo bem. Capricha, no que o tal milionário pediu. 295
RONALDO – Potencial evangelístico? Com certeza. 296
Pausa breve. A Gabi passa por atrás do Ronaldo.
GABI (sondando) – O senhor falou que tá ficando ótima, né? 297
RONALDO (enfático) – Tá. 298
GABI (apelando) – Deixa eu ler, vai! 299
RONALDO (fechando o note) – Nãão.. Já falei. Foi o combinado com o Murilo. Sigilo, total. 300
GABI – Aah… fala sério. / Só o tema. Ou nem isso pode? 301
RONALDO – É sobre uma… conspiração mal acabada, por parte do… universo. Aparentemente, mal acabada. 302
GABI – Conspiração do universo… / Em relação a quê? 303
RONALDO – É sobre uma… intervenção divina, numa determinada… realidade. 304
GABI – Intervenção divina ou conspiração do universo? 305
RONALDO (escorregadio) – É… um dos questionamentos, do texto. 306
GABI (insistente) – Pô, legal. Fiquei curiosa. Mais curiosa! Nééé? 307
RONALDO – Nãão, pera aí. / Aqui: E aquela história maluca lá, com aquele… nerd. 308
GABI – Não chama ele assim… Outro dia ele ouviu. E não gostou. Ficou triste. 309
RONALDO – Tá bom. Mas e aquela história? De casamento? Você é muito nova minha filha. 310
GABI – Vovó Candinha casou com dezesseis papai. 311
RONALDO – Isso aí foi em ooutra época. 312
GABI – Mamãe engravidou com…? 313
RONALDO – Tá bom. E vão viver do quê? 314
GABI (tranquila) – Era tudo o que eu precisava ouvir. / A gente tem um plano. E vamos precisar da sua ajuda. 315
RONALDO (cabreiro) – Se for dinheiro… 316
GABI – Mas a gente vai te ajudar também. A ganhar esse concurso. 317
RONALDO (descrente) – Ah é? 318
GABI – Hum hum. 319
RONALDO – E como seria isso? 320
GABI – Bom, pra começar, a gente vai ter que falar um pouquinho sobre… manias nacionais. 321
RONALDO (pagando pra ver) – Tá. Vai. 322
GABI – Por exemplo: Três. Futebol, samba e novela. 323
RONALDO – Ok. 324
GABI (intrépida) – Vejamos os lados formais, e informais, dessas manias nacionais. 325
RONALDO – Isso vai me ajudar a ganhar o concurso? 326
GABI (confiante) – Vai. Presta atenção. Futebol. Qual é o lado, formal, dessa mania nacional? 327
RONALDO – Formal… que você fala… 328
GABI – O lado profissional. Os clubes; os campeonatos… Estaduais; nacionais… Copa do mundo… E toda a grana que isso envolve. 329
RONALDO – Certo. O lado profissional é o lado formal. 330
GABI – Isso. E qual seria o lado informal, dessa mania nacional? 331
RONALDO (hesitante) – O futebol com os amigos? Aquela peladinha, sagrada, uma vez por semana. 332
GABI – Perfeito. Ou seja, em relação ao lado formal, profissional, o cidadão comum é apenas um… espectador, mas no lado informal, ele passa a ser… agente. 333
RONALDO – A gente é a gente, eles são eles. 334
GABI (sofrida) – Paai… O senhor entendeu, né? 335
RONALDO – Siiim minha filha. 336
GABI – Tá bom. Agora, Samba. Lado formal: Os desfiles de carnaval; os grupos profissionais de samba; de pagode; fazendo seus shows… Já se vendeu muito CD; muito DVD… 337
RONALDO – Sim, sim. 338
GABI – Mas qual é o lado informal, dessa mania nacional? 339
Pausa breve. O Ronaldo demora pra responder.
GABI (atropelando) – Aquela batucada, naquele boteco, tradicional, lá da sua vizinhança… / O próprio carnaval. Nos bairros; nos blocos… 340
RONALDO – Sim, sim! 341
GABI – Ou seja, o espectador do lado profissional, mais uma vez, vira… agente. Ok? 342
RONALDO – Tá. Tô te acompanhando. 343
GABI – Agora, novela: Lado formal? 344
Pausa breve. O Ronaldo pensa um pouco, e responde.
RONALDO – As novelas mesmo. Não é isso? 345
GABI (milimétrica) – Sim. E mais uma vez, lá está, o cidadão comum, como espectador do lado formal, de uma mania nacional. Agora me diz: Onde é que está o lado informal, dessa mania nacional? 346
Pausa breve. O Ronaldo pensa bem pra responder.
RONALDO – Não tem. 347
GABI (enfática) – Existe uma lacuna aí. Okeí? 348
RONALDO (surpreso) – Sim. Realmente. Foi você que sacou isso filhota? 349
GABI – Não. Foi o… nerd. / E acredite se quiser, ele sabe como preencher essa lacuna. 350
Pausa breve. Ronaldo avalia o que foi dito.
RONALDO (taxativo) – Não tem como. 351
GABI (distante) – Mas, teria que ser com um texto de teatro muito bom. 352
RONALDO – Como assim teatro? Não é novela? 353
GABI – Novela é um subproduto pai. E é um troço quilométrico! A gente tem que ir na raiz. O senhor vai entender. 354
RONALDO (curioso) – Então… sem uma peça muito boa… não vai. 355
GABI – Pois é, eu mostrei aquela sua, a que gente encenou na escola. Ele gostou, mas achou meio… datada. Aí eu falei: “Eles estão escrevendo outra”. E ele ficou bem interessado. 356
RONALDO – Ficou é? 357
GABI – Muito. 358
RONALDO – Mas como é que ele faria pra preencher, essa… lacuna? 359
GABI (enxadrista) – Pois é. Ele também me pediu segredo. // Xeque. 360
RONALDO – Tá bom. Eu vou ligar pro Murilo. Agora fala. 361
GABI – Liga agora. 362
RONALDO – Tá muito tarde. Amanhã eu ligo. 363
GABI – Então amanhã a gente conversa. 364
RONALDO (apelando) – Aah qual é? Me dá só uma palhinha. 365
GABI – É algo que vai PRIN-TAR, o seu texto, no cérebro das pessoas. 366
RONALDO (decretando) – Agora cê vai ter que falar. 367
GABI – Ele sabe como… democratizar uma direção de cena. 368
RONALDO – Como assim? Qualquer um pode dirigir a cena? É isso? 369
GABI – Qualquer um vai ter acesso, a direção das cenas. 370
RONALDO – Tá bom. Acho que entendi. Mas… como? 371
GABI – Ele bolou três formas distintas, de capturar em vídeo, o repasse dinâmico de uma direção de cena. Sendo que as três se complementam, numa espécie de… prisma. 372
RONALDO – Interessante. 373
GABI – Com isso nas redes, as pessoas podem brincar em casa, de encenar, sem compromisso. Escolhe um trechinho, ensaia; encena; filma; se auto avalia… Ficou bom? Joga na net. 374
RONALDO – Informalidade… 375
GABI – É isso aí. E ainda tem a base do prisma. Um canal dando altas dicas, e tirando as dúvidas da galera. 376
RONALDO – Muito bom. 377
GABI – Imagina se alguém, pelo menos a princípio, patrocina um número razoável de encenações… Um empurrãozinho, pra coisa pegar no tranco. 378
RONALDO – Você fala… 379
GABI – Uma dessas denominações evangélicas centenárias… Ou o próprio ricaço lá. O filho dele tem uma agência de atores. Acho que seria fácil colocar fogo nesse meio. 380
RONALDO – Disso eu não sabia. Você andou sondando Mariano? 381
GABI – Não. Isso aí foi coisa… dos três mosqueteiros. O seu genro, com os amigos dele lá. 382
RONALDO – Sei. 383
GABI – Para e pensa: O Brasil tem hoje, 20 mil atores e atrizes com formação, precisando trabalhar a visibilidade. Quem não é visto, não é lembrado. E a coisa toda é uma vitrine, né? 384
RONALDO – Sim. Claro. / Mas aí seriam atores, e não… o cidadão comum. 385
GABI – Sim, mas 99% deles são totalmente desconhecidos do grande público, então… quem vai perceber? E isso seria mais no começo. Até o público… entrar, na dança. 386
RONALDO – Pelo visto… vocês já pensaram em tudo. 387
GABI – Quer ver outra coisa? Desejar o maior número possível de conversões, não cabe apenas a convertidos… milionários. Correto? 388
RONALDO – Que que cê quer dizer? 389
GABI – Que 150 milhões de cristãos, viralizam o que quiserem! Financiando; encenando; postando… / Ou pelo menos… trabalhando os fragmentos da cocha de retalhos. 390
RONALDO – Fragmentos? Colcha de retalhos? 391
GABI – É… algo… pras pessoas… começarem a representar, só que… meio que… sem perceberem. Esquece. É coisa dos nerds lá. 392
RONALDO – Aplicados, não? 393
GABI – Sim! Quando o… nerd, leu no edital: “…maior potencial evangelístico…”. Ó ele pra mim: “Maria Gabriela…, eu tenho o “fermento” ideal pra isso”! 394
RONALDO – Interessante. / Colcha de retalhos…? 395
GABI – Ó, já falei demais. Vou tomar um banho e vou dormir. 396
RONALDO – Pera aí! E essas capturas de direção de cena? Me explica! 397
GABI – Liga pro Murilo. Amanhã a gente conversa. 398
RONALDO (ligeiro) – Não, não, não, não… 399
GABI – Psssh! Ó: Xeque-mate! 400
A Gabi sai de cena, o Ronaldo dá uma congelada, mas logo pega o celular, e faz uma ligação, enquanto sai de cena.
RONALDO – Alô. Desculpa a hora. Assunto de segurança nacional. 401
As luzes se apagam. Fim da quarta cena.
Cena 05 – O Prisma
A quinta cena começa com uma conversa já em andamento, entre Ronaldo e o Murilo, na sala da casa do Ronaldo.
RONALDO – Aí a gente libera… 70, 80% da peça, e segura o final. 402
MURILO – Entendi. / Bom, eu ainda não conheço os outros dois lados desse… prisma, mas esse, pras ovelhas do pastor Walter, vai ser praticamente… lazer. 403
RONALDO – Eu também vejo assim. 404
MURILO – Mas tem que explicar direitinho: Olha, são quinhentas falas, e cada uma vai gerar um fragmento. E o que é um fragmento? É, a fala… 405
RONALDO – …precedida de uma narrativa, contendo elementos de direção de cena, que te conduz… à… fala. É algo mais curto que uma dancinha de TikTok. 406
MURILO – Sim. Mas aí tem que dar uns exemplos. 407
RONALDO – Tá aqui ó. Eu escrevi uma cena curta, só pra treinar. 408
MURILO – É sério? Cadê? Lê aí. 409
RONALDO – Primeira fala: “Tudo bem dona Carolina. Podemos… tentar”. 410
MURILO – E o fragmento? Como é que ficou? 411
RONALDO (lendo) – Fragmento da fala 1: “A peça começa com Rogério, psicólogo da Carolina, olhando pela janela, com ar reflexivo… Enquanto ela, sentada no divã, de pernas cruzadas, coluna ereta… toda classuda, aguarda ansiosamente uma resposta. Até que ele se vira pra ela e fala assim: “Tudo bem dona Carolina. Podemos… tentar”. Captou? 412
MURILO – Sim, ficou ótimo! Você passa elementos de direção de cena, enquanto simplesmente… conta, a estória. 413
RONALDO – Fragmento da fala 2: 414
MURILO – Vai, vai. 415
RONALDO (lendo) – “Aí a Carolina faz aquela cara, de quem ouviu o que queria ouvir, e fala pra ele: “Aaah ótimo”! 416
MURILO – E é aquilo que você falou: Descontração. 417
RONALDO – Siim. Assistiu a peça ontem, e hoje tá na sala de casa, contando pro melhor amigo. 418
O Murilo balança positivamente, e o Ronaldo prossegue.
RONALDO (lendo) – Fragmento 3: “Aí o Rogério fala pra ela assim… com um ar bem brincalhão: “Mas deixe o… poodle, de sobreaviso”. Fragmento 4: “Isso aí a gente só vai entender láá na frente, mas a Carolina entende na hora. Tanto que respondeu com o maior sorrisão. Fazendo pausa e tudo: “Tá bom, doutor Rogério”. E aí? 419
MURILO – Perfeito. 420
RONALDO – Então. A gente elabora um por um, grava, e disponibiliza. Quem quiser participar, escolhe um, ou mais, e… clona. 421
MURILO – Quando você fala clona… 422
RONALDO – Imita. Escolhe um, assiste 20 vezes, encena e filma… 50; escolhe o melhor, e manda. 423
MURILO (surpreso) – Manda pra onde? 424
RONALDO – Pros nerds! A 1ª colcha de retalhos é deles. Se não dormirem no ponto. É lógico que vão jogar esses fragmentos na Net. Aí… quem mexe com edição vai fazer a festa. 425
MURILO – Se as igrejas começarem a encomendar então… 426
RONALDO – Eu não tinha pensado nisso. Agora imagina: a pessoa dá de cara com uma dessas e pensa o quê? “Que história é essa que todo mundo conhece, menos eu”? 427
MURILO – E conhecem assim… com uma propriedade, né? Com uma… familiaridade. 428
RONALDO – Com a NOSSA propriedade. Por isso é que tem que… clonar. / Agora imagina: (divagando) A primeira patchwork teatral da história, sendo replicada; virando febre… E tem tudo pra isso. 429
MURILO – Pode crê. / A primeira o quê? 430
RONALDO – Patchwork. P – a – t – c – h work. Patchwork. Colcha de retalhos, em inglês. 431
MURILO (simpático) – Gostei. 432
RONALDO (preocupado) – Quanto a esse o lance, de usar a igreja do pastor Walter, como… protótipo… Ele topa, não topa? 433
MURILO – Topa. A princípio a colcha seria só com a primeira cena, pro marketing, no município. O Mariano até bancaria a montagem do espetáculo. Se não quiser inclusive… atuar. / Dividindo a igreja em quatro grupos… 434
RONALDO – Daria… 22 fragmentos pra 300 pessoas. 435
MURILO – Fora os familiares. Conhecidos, de outras igrejas. Que já espalhariam a novidade… 436
RONALDO – Viraria meio que… uma gincana, né? 437
MURILO – Sim! Uma injeção de ânimo! No rebanho! / Mas aqui… 438
RONALDO – O quê? Fala. 439
MURILO (interessado) – E os outros dois lados do prisma? 440
RONALDO – Ah é… Então. Vamo lá. O segundo lado desse prisma, seria… uma leitura dirigida. 441
MURILO (imaginando) – Todo mundo sentado… com o texto na mão… 442
RONALDO – Sim, só que, uma leitura dirigida, normalmente é algo muito corrido. Feito às pressas. Entende? 443
MURILO – Eu sei. Aquilo é só pra… saber se o texto é bom; se vale a pena investir… Se a pessoa sabe realmente escrever… 444
RONALDO (didático) – Pois é. Só que nesse caso, a leitura dirigida é que vai ditar o ritmo, que a peça vai ter no palco. As pausas; as entonações; as caras e bocas… 445
MURILO – Isso é muito interessante. 446
RONALDO – As reações faciais de cada um, durante as falas do outro… 447
MURILO – Isso vai dar trabalho. 448
RONALDO (animado) – Pois é, mas a gente ainda tem quatro meses. E a rapaziada tá com a gente, né? 449
MURILO – Os nerds. O namorado da Gabi é o cabeça ali, né? 450
RONALDO – Sim. Aí tem o Roger, formado em artes cênicas, e o Brunovsk. Um monstrin, na captação e edição de imagens. 451
MURILO (relaxando) – Então estamos bem. 452
RONALDO (repentino) – Terceira face prisma. 453
MURILO (ajustando o foco)- Manda ver. 454
RONALDO – Seria esse mesmo vídeo, da leitura dirigida, com dezenas de pausas, pra gente inserir informações, sobre contexto da cena; psiquê dos personagens… Argumentações, sobre o porquê assim, e não assado… E tudo mais que for necessário. 455
MURILO – É pra esgotar o assunto, né? 456
RONALDO – Exatamente. Você entendeu o espírito da coisa. 457
MURILO (recaptulando) – Colcha de retalhos; leitura dirigida, ditando o ritmo; e, leitura dirigida… 458
RONALDO (estiloso) – … dissecada para enxerto informacional. O que é que cê tá achando? 459
MURILO (meio zonzo) – Eu tô… assimilando. Por enquanto… a labirintite tá na dela. 460
RONALDO – E ainda tem a base. 461
MURILO – Que base? 462
RONALDO – A base do prisma. Um canal na internet, pra tirar as dúvidas, de quem for montar o espetáculo. Nas igrejas, nas ruas… Ou, brincar com tudo isso em casa: escolhendo trechos das cenas; encenando; filmando; se auto avaliando; postando nas redes… Que é… um dos objetivos principais, né? 463
MURILO – Claro, claro. Preencher a tal… lacuna. / (sagaz) No final das contas, o público vai pras igrejas, não apenas pra conhecer o desfecho da obra, mas também pra avaliar, se as instruções de cena estão sendo seguidas à risca. Algo completamente inédito. (cômico) Como é que eu durmo hoje? 464
RONALDO – Eu não tinha pensado nisso. Ah! E com os apps de tradução… a coisa ganha o mundo, né? 465
MURILO (cômico) – Entendi. Não durmo. Ó a labirintite ó. 466
RONALDO (objetivo) – Aqui, desencana. Próximo passo: Marcar uma reunião. Com o meu genro, e os outros dois lá. 467
MURILO – “Meu genro”? Mas não era “o nerd”? 468
RONALDO – Eu falei meu genro? 469
MURILO – Falou. 470
RONALDO – Seei… (rápido) Não devo estar bem. Dormi pouco essa noite. Mas se liga aqui. 471
MURILO (achando graça) – Fala. 472
RONALDO – A gente tem que impressionar o pastor Walter. Ele é o link com Mister Zang. 473
MURILO – Agora você falou tudo. O que é que você tem em mente? 474
RONALDO – A gente grava uns vídeos, como exemplos, dessas capturas, pra ele visualizar o processo, e pede ajuda pra chegar no Zang. 475
MURILO – Essa molecada caiu do céu. 476
RONALDO – Devem estar pensando o mesmo nós. Um texto inédito; de boa qualidade; sem empecilhos quanto a direitos autorais… 477
MURILO – Eu não tinha pensado nisso. 478
RONALDO – Eles têm um nome pro projeto. Arte, Sísmica. 479
MURILO (avaliando) – Arte Sísmica. De abalo, sísmico. 480
RONALDO – É. Pra dar uma sacudida aí, na realidade. 481
MURILO – Muito bom. / Só não tem apelo popular, né? Tem que dizer logo de cara, a que veio. 482
RONALDO – A gente fala sobre isso com eles. 483
MURILO – Quer ver só? Projeto… “Teatro para Todos”. 484
RONALDO – “Opa, também quero”. 485
MURILO – Viu só? E não é essa a ideia? Aí chegam lá… e era vez uma lacuna. 486
RONALDO – Que os anjos digam amém! Vamo ligar pra eles logo? 487
MURILO – Demorou. 488
O Ronaldo pega o celular pra ligar, e as luzes se apagam. Fim da quinta cena.